PARTE I
HISTÓRIA DA FILOSOFIA CHINESA
Tal homem verdadeiro
é o que Confúcio chamou o "homem superior", que é a combinação do "homem bom
que não tem tristezas, o homem sábio que não tem perplexidades e o homem corajoso
que não tem medo". Faz da honestidade "a substância do seu ser", da
correção "a base da sua conduta", da modéstia seu "ponto de partida" e da
honestidade seu "alvo". Ele "se refreia em matéria de sexo quando seu sangue
e sua força vitais são fortes. Quando alcança a maturidade e seu sangue e
sua força vital estão cheios de vigor, refreia-se em questões de luta. Quando
alcança a velhice e seu sangue e força vital já enfraqueceram, refreia-se
em questões de aquisição". Ele visa a nove coisas. "No uso dos olhos, seu
objetivo é ver claramente. No uso dos ouvidos, seu objetrvo é escutar distintamente.
Na expressão, seu objetivo é ser afável. Quanto às maneiras, seu objetivo
é ser respeitoso. Na fala, seu objetivo é ser sincero. Nos negócios, seu objetivo
é ser sério. Na dúvida, procura esclarecimento. Quando tem raiva, pensa nas
conseqüências. Diante do lucro pensa na integridade." Nada faz contrário ao
princípio do decoro, quer ser lento no falar mas diligente no agir, e pensa
na vadade em vez de no lucro. Desfruta o prazer derivado da devida ordenação
de rituais e música, dos comentários sobre os merecimentos dos outros
e da amizade com muitos homens virtuosos. Renunciaria à riqueza e aos altos
cargos, mas suportaria a pobreza e as posições mesquinhas em nome dos princípios
morais. Não faz aos outros o que não quer que outros lhe façam, "retribui
o mal com a justiça (probidade) e retribui a bondade com a bondade".
Pratica a lealdade filial com os pais, ao ponto de nunca desobedecer, mas
aderindo estritamente ao princípio do decoro; serve aos pais quando estão
vivos, enterrando-os e sacrificando em sua honra quando estão mortos. É
respeitoso com os superiores. Em resumo, é um homem perfeito.
Esta ênfase no humanismo é suprema em Confúcio. Subjaz a todas as suas doutrinas
políticas, educacionais, estéticas e até lógicas. As pessoas devem ser governadas
pelos bons exemplos dos governantes, guiadas pela virtude e reguladas pelos
princípios do decoro, e o objetivo do governo é dar riqueza e instrução ao
povo e segurança ao Estado. O conhecimento é "conhecer os homens". O homem
superior "estuda a fim de aplicar seus princípios morais". Os poemas são "para
estimular nossas emoções, alargar vosso campo de observação, ampliar vosso
companheirismo e expressar-vos os ressentimentos". Ajudam-vos nos deveres
imediatos para com vossos pais e nos deveres mais remotos para com vosso governante.
Aumentam vossa familiaridade com os nomes dos pássaros, dos animais e das
plantas."' Mesmo a "retificação dos nomes", a abordagem confuciana que mais
se aproxima da Lógica, deve ser conduzida segundo diretrizes humanistas. Por
exemplo, a música não significa apenas sinos e tambores,41 pois os nomes,
quando retificados, têm um quê de prático. Assim, retificar nomes num Estado
significa "o governante ser um governante, o ministro ser um ministro, o pai
ser um pai, e o filho ser um fílho".
Este humanismo é completo, mas qual é seu fundamento lógico? Confúcio disse
que "há um princípio central que perscorre toda a minha doutrina". Tal
princípio central é geralmente aceito como significando "nada que não seja
a fidelidade a si mesmo e à reciprocidade." Se semelhante interpretação
é correta, então somos forçados a concluir que o fundamento do sistema confuciano
está no reino moral, isto é, na experiência humana mesma. O princípio é também,
em geral, tido como idêntico à doutrina confuciana da Harmonia Central (chung
yung, o áureo meio). De fato, essa doutrina é de suprema importância
na Filosofia chinesa; é, não apenas a espinha dorsal do Confucionismo, tanto
antigo como rooderno, mas também da Filosofia chinesa como um todo. Confúcio
disse que "encontrar a pista central (shung) do nosso ser moral e ser
harmonioso (yung) com o universo" é a suprema realização da nossa vida
moral. Isto parece implicar que Confúcio tinha como fundamento da sua ética
algo psicolcígico ou metatísico, porém este aspecto só foi desenvolvido dois
séculos mais tarde. Para Confúcio chung yung por certo significaVa o áureo
meio, como o indica o ditado "Ir longe demais é o mesmo que não ir longe o
bastante." O fundamento psicológico deve ser proporcionado por Mêncio e por
Hsün Tsé, e o metafísico pelo livro conhecido como o Chung Yung (ou A Doutrina
do Meio).
Confúcio interessava-se principalmente por um mundo prático e, portanto, ensinava-nos
a fazer o bem sem entrar no problema de por que devemos fazer o bem. Para
Mêncio (371-289 a.C.), entretanto, fazemos o bem, não apenas porque devemos,
mas porque temos que, pois "A natureza humana segue o bem da mesma
forma como a água procura o nível mais baixo." "Se os homens se tornam maus,
não é culpa do seu dom natural." Todos os homens têm, originariamente, o sentimento
da misericórdia, o sentimento da vergonha, o sentimento do respeito e o sentimento
do bem e do mal, e são estes os que chamamos de "quatro princípios
fundamentais da benevolência, da honestidade, do decoro e da sabedoria". Esta
consciência moral está enraizada no coração de um homem perfeito, o que pode
ser demonstrado pelos fatos de que todas as crianças sabem amar seus pais
e de que, quando os homens de repente vêem uma criança prestes a cair num
poço, inevitavelmente surge no coração deles um sentimento de misericórdia
e de alarma.
Este sentiménto inato do bem é uma "capacidade ingênita", que possuímos sem
necessidade de aprender, e é também "conhecimento ingênito", que possuímos
sem necessidade de pensamento. Assim, "todas as coisas já estão completas
no eu. Não há maior delícia do que voltar ao eu com sinceridade". Porque a
"sinceridade é o caminho do Céu, ao passo que pensar em como ser sincero é
o caminho do Homem". O princípio diretor da conduta humana é, portanto, "o
pleno exercício da mente". "Exercitar plenamente nossas mentes é conhecer
nossa natureza, e conhecer nossa natureza é conhecer o Céu. Preservar nosso
espírito e nutrir nossa natureza é o meio de servir ao Céu. Manter a singeleza
de espírito, quer soframos morte prematura quer tenhamos vida longa, e cultivar
nosso caráter pessoal e deixar que as coisas sigam seu curso são os meios
de talhar nosso destino." Assim, os pré-requisitos de uma ordem moral harmoniosa
estão completos dentro de nós. Em vez de olhar para a Natureza a fim de nos
conhecermos, olhamos dentro de nós a fim de conhecer a Natureza. Não temos
sequer que olhar para o sábio, pois ele "pertence à mesma espécie que nós".
A chave para a centralidade e a harmonia do universo, assim como para nós
mesmos, não deve, portanto, ser buscada longe. Está dentro da nossa natureza.
Desenvolver nossa natureza é realizar as virtudes a ela intrínsecas, que Mêncio
primeiro reduziu aos "quatro princípios fundamentais", e mais adiante à benevolência,
que é a "mente do Homem", e à integridade, que é o "caminho do homem".
Aquela é a base ética da sociedade, ao passo que esta é o fundamento da política.
O termo "benevolência" (jên) deve ser entendido em seu significado mais fundamental
de verdadeira natureza humana, pois Jên é aquilo que faz de um homem um homem.
Falando de modo geral, é o "princípio moral." O homem moral nada faz
que não esteja de acordo com a verdadeira natureza humana. De fato ele
ama todos os homens. A demonstração mais natural da verdadeira natureza
humana "é a lealdade aos pais", que para Mêncio era a maior de todas
as virtudes. "De todas as coisas que um tilha com verdadeira virtude filial
pode alcançar, não há nada mais grandioso do que honrar seus pais." A devoção
filial, então é o fundamento das cinco relações humanas. "Entre pai e filho,
deve haver afeição; entre soberano e ministro, honestidade; entre marido e
mulher, consideração pelas suas funções distintas; entre velhos e jovens,
uma ordem apropriada; e entre amigos, fidelidade." Quando tais qualidades
estiverem demonstradas, prevalecerá uma ordem social harmoniosa.
Essa tentativa de proporcionar um fundamento psicológico ao humanismo é um
desenvolvimento significativo na escola confuciana, não apenas porque representa
um grande avanço, mas também porque exerceu influência em toda a escola do
Neoconfucionismo, principalmente do século IV até os dias atuais.
O desenvolvimento psicológico em Hsün-Tsé (aproximadamente 355-apr. 288 a.C.)
seguiu, entretanto, quase direção oposta. Não que o espírito humanista nele
seja mais fraco; ao contrário, é muito mais forte. A Lei Moral (Tao) "não
é o caminho do Céu, nem o caminho da Terra mas o caminho seguido pelo Homem,
o caminho seguido pelo homem superior" e, mais especificamente, "Tao é o modo
de dirigir um Estado", ou, em outras palavras, "organizar o povo". Por conseguinte,
ele defendia vigorosamente o controle da Natureza:
Vós glorificais a Natureza e meditais sobre ela:
Por que não a amansais e não a regulais?
Vós obedeceis à Natureza e cantais em seu lonvor:
Por que não controlar seu cutso e usá-lo?
Vós contemplais as estações com reverência e as aguardais:
Por que não respondeis a elas com atividades sazonais?
Vós dependeis das coisas e vos maravilhais diante delas:
Por que não desenvolver vossa própria capacidade e transformá-las?
Vós meditais sobre o que torna uma coisa uma coisa:
Por que não ordenar as coisas de modo a não desperdiçá-las?
Vós buscais em vão a causa das coisas:
Por que não usufruir e ampliar-se do que elas produzem?
Portanto, digo: desdenhar o homem e especular sobre a Natureza
é mal compreender os fatos do Universo.
Hsün-Tsé acreditava necessário o domínio da Natureza porque achava que
a natureza humana é muito diferente da descrição que dela fazia Mêncio. Para
Hün-Tsé, "A Natureza do Homem é má; sua bondade é adquirida (pelo treinamento)."
O móvel aqui foi, obviamente, dar ênfase à educação, ênfase que o tornou o
principal filósofo da educação na China antiga. Como a natureza original do
Homem é má, ele "precisa passar pela instrução de professores e leis". Assim,
a virtude não é inata, mas deve ser "acumulada", da mesma forma como as montanhas
são formadas por acumulação de terra. O princípio diretor da acumulação para
o indivíduo é o li ou decoro, para a sociedade é a "retificação de
nomes", e para o governo é "a modelagem de acordo com os reis sábios dos últimos
dias". Quando a 'virtude é "acumulada" a um grau suficiente, o Homem pode,
então, "formar uma tríade com o Céu e a Terra".
Pelo fim do século IV a.C., o Confucionismo deu mais um passo à frente. Houve
uma tentativa de proporcionar um fundamento metafísico para o seu humanismo,
como podemos ver pelo livro chamado Chung Yung ou A Doutrina do
Meio.
De acordo com esse livro, nosso eu central ou nosso ser moral é concebido
como "a grande base da vida", e a harmonia ou a ordem moral é "a lei universal
do mundo. Quando o nosso cerdadeiro eu e harmonia centrais são realizados,
o universo então se torna um cosmos e todas as coisas alcançam seu pleno crescimento
e desenvolvimento". Assim, "a vida do homem moral é uma exemplificação
da ordem moral universal". O Chung Yung declara além disso que ser fiel a
si mesmo (ch'êng, sinceridade) é "a lei do Céu" e tentar ser fiel a
si mesmo é "a lei do Homem". Esta verdade é "absoluta", "índestrutível", "eterna",
"auto-existente", "ínfínita", "vasta e profunda", "transcendental e inteligente".
Contém e abarca toda a existência; cumpre e aperfeiçoa toda a existência.
"Sendo esta a natureza da verdade absoluta, manifesta-se sem ser vista; produz
efeitos sem movimento; atinge seus objetivos sem ação." Apenas aqueles que
são "seus absolutos eus verdadeiros" podem "realizar sua própria natureza",
podem "realizar a natureza dos outros", podem "realizar a natureza das coisas",
podem "ajudar a Mãe Natureza a cultivar a vida", e podem ser "os iguais do
Céu e da Terra". Não se sabe até que ponto foi original esta tendência metafísica
em Confúcio, mas tornou-se ela um fator extremamente significativo no Confucionismo
posterior, especialmente no Neoconfucionismo dos séculos XI e XV.
| Parte II - O Taoísmo Primitivo: Yang Chu e Lao Tsé | Index |